17 de Fevereiro de 2016
Autor: Marco Aurélio Tófani Filho
1. INTRODUÇÃO
O artigo 334 do Código
Penal Brasileiro prevê os crimes de contrabando e descaminho. Esses tipos
penais cada vez mais se tornam de suma importância na sociedade atual,
principalmente pelas constantes mudanças em razão da acelerada globalização e
dos avanços tecnológicos. Mesmo assim, a estrutura formal desses tipos penais,
quase não sofreu alterações significativas desde a edição do Código. Porém, a
criação de um conjunto de normas que regem a penalização dos ilícitos
tributários impõe a premente necessidade de adequação do descaminho ao sistema
jurídico atual.
É preciso, que o crime de
descaminho, seja concebido não como um instrumento de punição aos que
eventualmente atravessam as fronteiras com mercadoria sem o pagamento dos
tributos devidos, mas como uma importante ferramenta de incremento das receitas
públicas e de proteção do mercado contra a concorrência desleal produzida pelos
sonegadores. Mas não só isso. É necessário que seja amoldado às modernas normas
que regem os crimes tributários em geral, as quais privilegiam o pagamento dos
tributos e a pacificação social, sobretudo com o instituto da extinção da
punibilidade pelo pagamento. Contudo, a incapacidade legislativa nesse campo
tem levado a que doutrina e jurisprudência se dividissem sobre a possibilidade
e conveniência de extinguir-se a punibilidade daqueles que efetuassem o
pagamento dos tributos sonegados.
Controversas também são
as posições quando a discussão é sobre a quais crimes se aplicaria este favor
legal, qual seria o momento correto para o pagamento, bem como sobre como
proceder em caso de parcelamento dos débitos.
Nessa senda, o presente
trabalho tem o objetivo de tentar esclarecer este polêmico tema, que pouca
atenção recebe por parte dos operadores do Direito, defendendo a possibilidade
de aplicação da extinção da punibilidade pelo pagamento ao crime de descaminho,
por considerar essa, a solução que melhor atende à finalidade das normas penais
tributárias.
2. O CRIME DE DESCAMINHO
2.1. Conceito e Previsão
Legal
O crime de Descaminho
encontra-se previsto no art. 334 do Código Penal, na parte especial, Título XI
(“Dos crimes contra a administração Pública”), Capítulo II (dos crimes
praticados por particular contra a administração pública), que tem a seguinte
redação:
“Art. 334 - Importar ou
exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de
direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de
mercadoria:
Pena - reclusão, de 1
(um) a 4 (quatro) anos.”
Esse artigo engloba a
classificação de dois tipos distintos de crimes, o Contrabando, definido na
primeira parte do caput como: “importar ou exportar mercadoria proibida”, e o
Descaminho, na segunda parte do texto como sendo: “iludir, no todo ou em parte,
o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo
consumo de mercadoria”.
Apesar do Contrabando e o
Descaminho figurarem no mesmo artigo e serem tratados pelo Código Penal como se
fossem idênticos, na verdade são ilícitos completamente diferentes.
O Contrabando consiste na
importação ou exportação de mercadorias tidas como ilícitas, e o Descaminho é a
entrada, saída ou consumo de mercadorias lícitas, as quais o agente ilude o
pagamento do tributo, total ou parcialmente, evitando, assim, o recolhimento
dos impostos devidos.
O Descaminho, na
realidade, seria um “contrabando contra o fisco”, já que lesa exclusivamente o
erário público, tendo natureza meramente fiscal.
Nelson Hungria distingue
as duas figuras:
“Contrabando é a
clandestina importação ou exportação de mercadorias cuja a entrada no país, ou
saída dele, é absoluta ou relativamente proibida; enquanto descaminho é a
fraude tendente a frustrar, total ou parcialmente, o pagamento de direitos de
importação ou exportação ou do imposto de consumo (a ser cobrado na própria
aduana) sobre mercadorias”.(HUNGRIA, 1959)
Resumindo, no contrabando
há a importação ou exportação de mercadorias proibidas de circularem no país,
ao passo que no descaminho o agente age mediante fraude, com o intuito de
evitar o recolhimento de tributos atinentes à importação ou exportação de
mercadorias permitidas.
2.2. Natureza Jurídica
A jurisprudência não é pacífica
no que diz respeito à natureza jurídica do descaminho, haja vista estar
tipificado no Código Penal como crime contra a administração pública, e, assim
sendo, não seria propriamente um crime contra ordem tributária.
A Parte mais conservadora
da doutrina entende que o bem jurídico tutelado no crime de descaminho, de
forma genérica, seria a Administração Pública, enquanto que o bem jurídico
específico, seria representado pelo interesse da Fazenda em ver pago o seu
Tributo, pela segurança da importação e exportação, pelo bem estar econômico,
pela moralidade pública e também pela proteção dos interesses da indústria
nacional.
Segundo Cezar Roberto
Bitencourt:
“A tendência atual é de
criminalizar a fraude contra o fisco, dessa forma, seria pouco provável que a
legislação contemporânea deixasse de criminalizar o contrabando e o descaminho,
em razão de entenderem que esses delitos ofendem mais do que apenas a
Administração Pública e o erário público, mas também atingem a soberania
nacional”. (BITENCOURT, 2007)
Na prática, todavia, com
o crime de descaminho ficam essencialmente comprometidos os recolhimentos
tributários do II e IE (imposto de importação e exportação); do IPI (Imposto de
produtos industrializados) e do ICMS (imposto sobre a circulação de mercadorias
e serviços), o que, a bem da verdade, reflete apenas uma “sonegação fiscal”.
Nesse passo, em sentido
contrário às teses acima expostas, e ainda em minoria, alguns juristas e
doutrinadores enxergam que o Descaminho seria meramente um crime tributário,
haja vista abranger exclusivamente o interesse da Fazenda em ver seu tributo
recolhido, razão pela qual mereceria o mesmo tratamento dos crimes abarcados
pela Lei 8137/90 (crimes contra a ordem tributária), já que os bens jurídicos
protegidos são idênticos.
Cezar Roberto Bitencourt,
“...enquanto o
descaminho, fraude ao pagamento dos tributos aduaneiros, é, grosso modo, crime
de sonegação fiscal, ilícito de natureza tributária, pois atenta imediatamente
contra o erário público, o contrabando propriamente dito, a exportação ou
importação de determinada mercadoria proibida, não se enquadra entre os delitos
de natureza tributária”. (BITENCOURT, 2007)
Durval Carneiro, adotando
o mesmo posicionamento de Bitencourt, revela que o bem jurídico protegido no
descaminho se assemelha com o bem tutelado nos demais crimes fiscais, no caso,
a ordem tributária em sentido amplo, a saber:
“Sendo assim, ao se
examinar o tipo penal do art. 334 do CP (caput, 2ª parte), vê-se que o bem
jurídico tutelado é prioritariamente o mesmo dos demais crimes fiscais, ou
seja, a ordem tributária em seu sentido amplo, consubstanciada no interesse da
Administração Pública numa regular arrecadação de tributos para fazer frente às
necessidades coletivas, bem como em aspectos extrafiscais”. (CARNEIRO NETO,
2010)
Portanto, apesar da
maioria ainda entender que o bem tutelado no crime de descaminho não se
restringe apenas ao erário público, atingindo também o bem estar da economia, a
segurança e a soberania do país, há uma nova tendência crescente no país
reconhecendo que o único bem jurídico protegido no ilícito seria exatamente o
mesmo daqueles constantes no art. 1º da Lei 8.137, ou seja, a ordem tributária.
3. O DIREITO PENAL E OS CRIMES TRIBUTÁRIOS
3.1. Fundamentos do
Direito Penal e a “razão de ser” das normas penais tributárias.
O Direito Penal é o ramo
do Direito que tem a função de proteger os bens jurídicos mais importantes da
vida social, através da sanção mais grave que há no sistema, que é a pena.
Porém, é preciso ter sempre em mente a lição preconizada por Edmar Oliveira
Andrade Filho:
“Como criação humana, o
direito tem as virtudes e os defeitos do ser humano. O reconhecimento dessa
circunstância é de fundamental importância para o conhecimento das normas de
direito positivo, [especialmente daquelas] que dispõe sobre ilícitos
relacionados ao descumprimento de obrigações de índole tributária”. (ANDRADE
FILHO, 2001)
Segundo leciona Damásio
de Jesus:
“O Direito Penal regula
as relações do indivíduo com a sociedade. Quando o sujeito pratica um ilícito,
estabelece-se uma relação entre ele e o Estado. Surge, então o jus puniendi,
que é o direito que tem o Estado de atuar sobre os delinquentes na defesa da
sociedade contra o crime. Assim, o direito de punir um indivíduo exsurge toda
vez que o agente pratica um crime (ou contravenção), que segundo a teoria
clássica, concretiza-se em um fato típico, ilícito e culpável”. (JESUS, 2005)
Por outro lado, o Direito
Penal não pode preocupar-se apenas com o resultado da ação, mas, sobretudo,
deve buscar evidenciar o desvalor do resultado com o desvalor da ação que gerou
esse evento. Tanto assim que o fato do agente arrepender-se após praticar um
crime, e agir para que a sua ação não tenha qualquer resultado (retorno ao
status quo ante) não exclui o crime, sendo cabível aqui apenas a aplicação de
um instituto redutor de pena, qual seja o arrependimento posterior,
disciplinado no art. 16, do Código Penal.
Entretanto, a criação de
tipos penais para punição de crimes relacionados à evasão fiscal marcou o
surgimento de um novo ramo dentro do Direito Penal, que utiliza as mesmas
regras gerais deste, e, por isso, não se estrutura como ciência jurídica
autônoma, mas que por outro lado possui características próprias. A essa nova
ramificação atribuiu-se a denominação de Direito Penal Tributário.
Segundo Edmar Oliveira
Andrade Filho:
“Havendo crime,
incidiriam as normas do Direito Penal Tributário, que dizem respeito ao
conjunto de normas jurídicas que tutelam o patrimônio do sujeito ativo da
obrigação tributária e que prescrevem penas privativas de liberdade e multa,
sempre que o descumprimento de tais obrigações se der por meio de artifícios
fraudulentos, segundo a descrição contida na lei, e que estejam presentes os
elementos que informam a culpabilidade”. (ANDRADE FILHO, 2001)
Assim, desde o advento da
Lei nº 4.729/60, que introduziu a punição aos denominados crimes tributários no
sistema jurídico brasileiro, verifica-se uma visível preocupação do legislador
com o resultado da ação, e não com a conduta em si do sonegador. O art. 2º da
lei acima referida, por exemplo, previa a extinção da punibilidade do agente se
este efetuasse o pagamento antes do início da execução fiscal no âmbito
administrativo, o que evidenciava a intenção do legislador em receber os
tributos defraudados, e não de punir os sonegadores.
Pelo exposto,
identifica-se aqui um emprego utilitarista e simbólico do Direito Penal. O
combate à evasão fiscal é feito não pelo temor da pena que possa ser imposta
àqueles que sonegam, mas pela possibilidade destes efetuarem o pagamento
daquilo que sonegaram e, assim, verem-se livres da sanção penal. Há uma
prevalência dos interesses fazendários estatais sobre o jus puniendi deste
mesmo Estado, o que dá ampla margem para a criação de políticas criminais
despenalizadoras.
3.2. Resistência aos
tributos e estímulo ao pagamento
A instituição de tributos
sempre representou um traço de dominação, sendo os povos dominados obrigados a
pagar impostos aos dominadores. O tributo sempre teve o caráter comum de só ser
pago por obrigação e mediante a imposição de duríssimas sanções, muitas vezes a
pena capital. Muito embora o Estado moderno tenha uma concepção muito menos
maniqueísta, é fato que os tributos, nada obstante devessem reverter
integralmente em proveito da sociedade, são frequentemente desviados em
proveito de uma classe política dominante, o que gera um sentimento de
injustiça e uma repulsa ao pagamento de impostos. A esse respeito, com muita
propriedade escreveu Hector Villegas:
“Durante muito tempo,
houve resistência ao tributo, por ser ele considerado fruto de desigualdade,
privilégio e injustiça. O
cumprimento das
obrigações tributárias representava um sinal tangível de submissão e servidão
do indivíduo ao Estado. Daí porque renomados tratadistas consideram o tributo
como um mal, desinteressando-se do estudo da evasão, ou permanecendo indiferentes
diante dela, havendo mesmo quem chegasse a estimulá-la. […] Muitos – que se
horrorizariam se lhes fosse proposto cometer um crime comum – se interessam em
conhecer as manobras para iludir a legislação tributária, não excluindo a
possibilidade de praticá-las. Isto leva a que conhecidos infratores dessa
matéria – longe de serem repudiados pelos círculos sociais onde vivem – sejam
bastante invejados pelo êxito econômico que os acompanha, sendo muitos os que
aguardam oportunidade propícia para imitá-los.” (VILLEGAS, 1974)
Ademais, é sabido que os
contribuintes brasileiros estão hoje em dia submetidos a uma escorchante carga
tributária, sendo plausível que adotem medidas legais para abrandá-la,
acorrendo ao Poder Judiciário, por exemplo, para que prevaleça a correta
interpretação das leis tributárias, ou mesmo evitando de praticar o fato
gerador, explorando alguma lacuna ou obscuridade da lei. Nesse quadro, é
preciso que o legislador crie condições para que o sujeito passivo da obrigação
tributária adimpla suas obrigações, ou seja, é preciso estimular o pagamento.
Por outro lado, aqueles
que se opõem à extinção da punibilidade do pagamento, alegam que as medidas
despenalizadoras estimulam a sonegação, bem como criam um tratamento desigual
entre os que podem e os que não podem pagar, privilegiando os primeiros.
Entretanto, é preciso dizer que é um equívoco acreditar que apenas o efeito
intimidativo da pena seja capaz de fazer com que todos satisfaçam as suas
obrigações tributárias.
Segundo Hugo de Brito
Machado:
“O efeito intimidativo é
diretamente proporcional à certeza de que, apanhado no cometimento delituoso, a
punição não ocorrerá”. Dessa forma, por uma série de razões, entre as quais a
deficiente fiscalização por parte dos órgãos administrativos e a proteção que o
sistema jurídico oferece aos acusados de cometimento de crimes, frequentemente
delinquentes não são sequer processados pelos crimes que cometeram, e, se
processados e condenados, dificilmente são encarcerados.” (MACHADO, 2002)
Da mesma forma, não
procedem as alegações de estímulo à sonegação e tratamento desigual entre os
contribuintes. Novamente Hugo de Brito Machado (2002, p. 233-235) bem
esclarece que o estímulo à evasão
somente existe à medida que a fiscalização tributária seja ineficiente.
Ademais, “um aperfeiçoamento da fiscalização, somado à possibilidade de pena
prisional para os que não pagarem, é o melhor desestímulo à sonegação”. Quanto
à isonomia, é importante frisar que, aquele que não puder realizar o pagamento
para extinguir a sua punibilidade, pode efetuar o parcelamento, e ter sua
punibilidade suspensa até a quitação integral do débito.
Por fim, vale mais uma
vez lembrar que a extinção da punibilidade tem o fito de incentivar o
contribuinte a efetuar o pagamento. Todavia, se ele souber que, mesmo pagando,
continuará sob ameaça da pena privativa de liberdade, não terá nenhum interesse
em integralizar o pagamento.
4. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELO PAGAMENTO
4.1. Conceito de Extinção
da Punibilidade
Extinguir a punibilidade
significa fulminar o jus puniendi do Estado em relação a determinada pessoa,
acusada de cometer um delito. As causas comuns de extinção da punibilidade
estão no artigo 107 do Código Penal, e são, a morte do agente; a anistia, graça
ou indulto; a abolitio criminis; a prescrição, decadência ou perempção; a
renúncia do direito de queixa ou o perdão aceito, nos crimes de ação privada; a
retratação do agente e o perdão judicial. Entretanto, há casos outros,
previstos em leis esparsas, aplicáveis a determinados tipos de delitos, como é
o caso da extinção da punibilidade pelo pagamento, aqui objeto de análise.
4.2. Pagamento e
parcelamento
O pagamento, para efeito
de extinção da punibilidade, deve ser interpretado em sentido bastante amplo.
Dessa feita, embora o pagamento seja apenas uma das formas de extinção do
crédito tributário, todas as demais modalidades de extinção do crédito devem
ser admitidas para fins penais. Afinal, se o crédito já estiver extinto, como
poderá o agente efetuar o pagamento para valer-se do favor legal? Todavia, é um
erro considerar o perdimento das mercadorias descaminhadas como sinônimo de
pagamento, pois a pena de perdimento é uma sanção administrativa e sequer se
equipara às formas de extinção do crédito, nem é compatível com o pagamento.
A extinção do crédito
tributário, por seu turno, é regulada pelo artigo 156 do Código Tributário
Nacional, e, dentre as modalidades previstas em lei está a transação. Dessa
forma, houve uma enorme controvérsia jurisprudencial acerca do parcelamento do
débito, mesmo que não fosse realizado o pagamento de nenhuma parcela. Algumas
turmas do Superior Tribunal de Justiça seguiram o entendimento de que o simples
parcelamento seria uma forma de transação, e, portanto, instrumento hábil a
extinguir a punibilidade.
Contudo, a orientação
preconizada pelo STJ criava uma solução equivocada, pois não atendia aos
anseios do Fisco, ao exigir tão somente a formalização do parcelamento, e nem à
necessária repressão do aparelho penal. Dessa forma, diversos fraudadores,
descobertos pela
fiscalização tributária, efetuavam o
parcelamento do débito, livrando-se do processo penal e de uma possível
condenação, porém jamais chegavam a adimplir as condições acordadas, servindo
esta lacuna legal, como incentivo à evasão fiscal.
Por sorte, as legislações
que sobrevieram, como a Lei nº 9.964/00 (Refis I), a Lei nº 10.684/03 (REFIS
II, também conhecido como PAES), e até mesmo a Lei nº 11.941/09, regulamentando
os programas de regularização de créditos federais, deram novo tratamento à
matéria penal, sovertendo o entendimento anteriormente esposado.
Primeiro, a lei do Refis
I inovou ao prever a suspensão do processo penal (e consequentemente da
pretensão punitiva) enquanto o contribuinte estivesse vinculado ao
parcelamento. Esta providência foi extremamente importante, pois, por um lado,
possibilitou àqueles que não possuem condições financeiras a oportunidade de
pagar, e, assim, verem extinta a punibilidade dos seus crimes, e, por outro,
definiu que apenas o cumprimento integral do acordo extinguiria a punibilidade
do agente, impedindo o denominado “parcelamento de ocasião”. Vale frisar que,
por expressa determinação legal, a formalização do ajuste deveria ocorrer antes
do recebimento da denúncia.
Já a Lei 10.684/03,
mantendo a suspensão do processo e da prescrição penal enquanto não rescindidos
os parcelamentos, e a extinção da punibilidade quando totalmente adimplido o
pacto, silenciou quanto à necessidade da formalização ser concretizada antes do
recebimento da denúncia. Isso levou a que muitos doutrinadores concluíssem pela
possibilidade do agente efetuar o parcelamento em qualquer fase do processo.
Ademais, sendo lei mais benéfica ao réu, possui aplicação retroativa.
Da mesma forma, a Lei
11.941/09 manteve a disciplina da matéria nos moldes das legislações
anteriores, determinando, somente, que se o parcelamento for realizado antes do
recebimento da denúncia, essa somente poderá ser aceita na superveniência de
inadimplemento da obrigação objeto da denúncia.
Nessa vereda, fica mais
uma vez evidenciado o maior interesse do Estado em receber seus créditos, ainda
que de forma parcelada, em vez de punir eventuais fraudadores. É a adoção de
uma política penal-tributária que privilegia a realização da receita,
funcionando como um grande estímulo à regularização fiscal e ao pagamento dos
tributos sonegados.
Por fim, cabe registrar
que essas mesmas leis que disciplinam os programas de parcelamento, restringem
a aplicação do favor legal apenas aos crimes previstos nos artigos 1º e 2º da
Lei nº 8.137/90 e nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal. Entretanto, por
todo o exposto no presente trabalho, conclui-se pela possibilidade de sua extensão
a todos os crimes tributários, inclusive o descaminho, não se justificando a
diferenciação feita pela lei.
4.3. Analogia
“Pró-contribuinte” em relação ao crime de descaminho.
A analogia consiste em
aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso
semelhante. Onde houver o mesmo fundamento, deve ser aplicado o mesmo direito.
Como corolário do princípio da legalidade, proíbe-se o uso da analogia para
fundamentar ou agravar a pena (“nullum crimen sine lege stricta”). Porém, seu
uso é plenamente aceito quando o for para beneficiar o réu, justificando-se no
princípio da equidade.
Segundo Francisco de
Assis Toledo:
“A analogia pode ser
considerada sob o aspecto da lei ou do direito. No primeiro caso, “parte-se de
um preceito isolado; no segundo, parte-se de um conjunto de normas, extraem-se
delas o pensamento fundamental ou os princípios que as informam para aplicá-los
a um caso omisso, semelhante ao que encontraria subsunção natural naquelas
normas ou princípios”. (TOLEDO, 2000)
Este último é exatamente
o caso
Portanto, deverá o Poder
Judiciário estender ao crime de descaminho a possibilidade da extinção da
punibilidade pelo pagamento, como forma de estimular a quitação dos tributos
sonegados.
5. CONCLUSÃO
Primeiramente, por todo o
exposto acima, fica claro que o crime de descaminho não é propriamente um crime
contra a Administração Pública, mas um delito tributário, pois atenta,
essencialmente, contra o interesse fazendário do Estado.
Outro ponto importante é
reconhecer que o papel do Direito Penal no campo tributário, deva ser, única e
exclusivamente, impelir o contribuinte a pagar o que deve.
O pagamento deve ser
entendido como sinônimo de extinção do crédito tributário, e o parcelamento
suspende a prescrição da pretensão punitiva até o adimplemento total do acordo,
quando então restará extinta a punibilidade;
Nesse sentido, a possibilidade
da extinção da punibilidade pelo pagamento é, do ponto de vista pragmático, a
solução que melhor atende aos interesses do Fisco, pois, além de estimular a
quitação, evita enormes gastos com a movimentação da máquina judiciária para
processar o sonegador.
Para isso, por uma
questão de equidade e justiça, deve-se estender a aplicação desse favor legal a
todos os crimes tributários, com fundamento na analogia “in bonam partem”. Mas
não é só uma questão de analogia, deve-se buscar também, uma interpretação no
aspecto finalístico da norma. Se a intenção é receber os tributos sonegados,
deve-se aplicar a norma de forma que ela tenha a máxima efetividade em relação
a este fim. E outro não é o interesse do Estado senão o de receber aquilo que
tem direito.
Portanto, não resta dúvida de que a melhor solução para o problema em
questão é a simples aplicação ao crime de descaminho da possibilidade da
extinção da punibilidade através do pagamento dos tributos sonegados.
6.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito
Penal Tributário: crimes contra a ordem tributária e contra a previdência
social. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado
de Direito Penal - Parte especial. v 5. São Paulo: Saraiva, 2007.
CARNEIRO NETO, Durval. A
atipicidade do descaminho quando há perdimento de mercadoria. Rio Grande.
Âmbito Jurídico, 01 jun 2010.
HUNGRIA, Nelson. Comentários
ao Código Penal: volume IX. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959.
JESUS, Damásio Evangelista. Tratado
de Direito Penal, volume 1: parte geral. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
MACHADO, Hugo de Brito. Estudos
de Direito Penal Tributário. São Paulo: Atlas, 2002.
NETO, André Nabarrete. Extinção
da Punibilidade nos crimes contra a Ordem Tributária. Revista Brasileira de
Ciências Criminais nº 17. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios
básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.T
O artigo 334 do Código
Penal Brasileiro prevê os crimes de contrabando e descaminho. Esses tipos
penais cada vez mais se tornam de suma importância na sociedade atual,
principalmente pelas constantes mudanças em razão da acelerada globalização e
dos avanços tecnológicos. Mesmo assim, a estrutura formal desses tipos penais,
quase não sofreu alterações significativas desde a edição do Código. Porém, a
criação de um conjunto de normas que regem a penalização dos ilícitos
tributários impõe a premente necessidade de adequação do descaminho ao sistema
jurídico atual.
É preciso, que o crime de
descaminho, seja concebido não como um instrumento de punição aos que
eventualmente atravessam as fronteiras com mercadoria sem o pagamento dos
tributos devidos, mas como uma importante ferramenta de incremento das receitas
públicas e de proteção do mercado contra a concorrência desleal produzida pelos
sonegadores. Mas não só isso. É necessário que seja amoldado às modernas normas
que regem os crimes tributários em geral, as quais privilegiam o pagamento dos
tributos e a pacificação social, sobretudo com o instituto da extinção da
punibilidade pelo pagamento. Contudo, a incapacidade legislativa nesse campo
tem levado a que doutrina e jurisprudência se dividissem sobre a possibilidade
e conveniência de extinguir-se a punibilidade daqueles que efetuassem o
pagamento dos tributos sonegados.
Controversas também são
as posições quando a discussão é sobre a quais crimes se aplicaria este favor
legal, qual seria o momento correto para o pagamento, bem como sobre como
proceder em caso de parcelamento dos débitos.
Nessa senda, o presente
trabalho tem o objetivo de tentar esclarecer este polêmico tema, que pouca
atenção recebe por parte dos operadores do Direito, defendendo a possibilidade
de aplicação da extinção da punibilidade pelo pagamento ao crime de descaminho,
por considerar essa, a solução que melhor atende à finalidade das normas penais
tributárias.
2. O CRIME DE DESCAMINHO
2.1. Conceito e Previsão
Legal
O crime de Descaminho
encontra-se previsto no art. 334 do Código Penal, na parte especial, Título XI
(“Dos crimes contra a administração Pública”), Capítulo II (dos crimes
praticados por particular contra a administração pública), que tem a seguinte
redação:
“Art. 334 - Importar ou
exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de
direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de
mercadoria:
Pena - reclusão, de 1
(um) a 4 (quatro) anos.”
Esse artigo engloba a
classificação de dois tipos distintos de crimes, o Contrabando, definido na
primeira parte do caput como: “importar ou exportar mercadoria proibida”, e o
Descaminho, na segunda parte do texto como sendo: “iludir, no todo ou em parte,
o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo
consumo de mercadoria”.
Apesar do Contrabando e o
Descaminho figurarem no mesmo artigo e serem tratados pelo Código Penal como se
fossem idênticos, na verdade são ilícitos completamente diferentes.
O Contrabando consiste na
importação ou exportação de mercadorias tidas como ilícitas, e o Descaminho é a
entrada, saída ou consumo de mercadorias lícitas, as quais o agente ilude o
pagamento do tributo, total ou parcialmente, evitando, assim, o recolhimento
dos impostos devidos.
O Descaminho, na
realidade, seria um “contrabando contra o fisco”, já que lesa exclusivamente o
erário público, tendo natureza meramente fiscal.
Nelson Hungria distingue
as duas figuras:
“Contrabando é a
clandestina importação ou exportação de mercadorias cuja a entrada no país, ou
saída dele, é absoluta ou relativamente proibida; enquanto descaminho é a
fraude tendente a frustrar, total ou parcialmente, o pagamento de direitos de
importação ou exportação ou do imposto de consumo (a ser cobrado na própria
aduana) sobre mercadorias”.(HUNGRIA, 1959)
Resumindo, no contrabando
há a importação ou exportação de mercadorias proibidas de circularem no país,
ao passo que no descaminho o agente age mediante fraude, com o intuito de
evitar o recolhimento de tributos atinentes à importação ou exportação de
mercadorias permitidas.
2.2. Natureza Jurídica
A jurisprudência não é pacífica
no que diz respeito à natureza jurídica do descaminho, haja vista estar
tipificado no Código Penal como crime contra a administração pública, e, assim
sendo, não seria propriamente um crime contra ordem tributária.
A Parte mais conservadora
da doutrina entende que o bem jurídico tutelado no crime de descaminho, de
forma genérica, seria a Administração Pública, enquanto que o bem jurídico
específico, seria representado pelo interesse da Fazenda em ver pago o seu
Tributo, pela segurança da importação e exportação, pelo bem estar econômico,
pela moralidade pública e também pela proteção dos interesses da indústria
nacional.
Segundo Cezar Roberto
Bitencourt:
“A tendência atual é de
criminalizar a fraude contra o fisco, dessa forma, seria pouco provável que a
legislação contemporânea deixasse de criminalizar o contrabando e o descaminho,
em razão de entenderem que esses delitos ofendem mais do que apenas a
Administração Pública e o erário público, mas também atingem a soberania
nacional”. (BITENCOURT, 2007)
Na prática, todavia, com
o crime de descaminho ficam essencialmente comprometidos os recolhimentos
tributários do II e IE (imposto de importação e exportação); do IPI (Imposto de
produtos industrializados) e do ICMS (imposto sobre a circulação de mercadorias
e serviços), o que, a bem da verdade, reflete apenas uma “sonegação fiscal”.
Nesse passo, em sentido
contrário às teses acima expostas, e ainda em minoria, alguns juristas e
doutrinadores enxergam que o Descaminho seria meramente um crime tributário,
haja vista abranger exclusivamente o interesse da Fazenda em ver seu tributo
recolhido, razão pela qual mereceria o mesmo tratamento dos crimes abarcados
pela Lei 8137/90 (crimes contra a ordem tributária), já que os bens jurídicos
protegidos são idênticos.
Cezar Roberto Bitencourt,
“...enquanto o
descaminho, fraude ao pagamento dos tributos aduaneiros, é, grosso modo, crime
de sonegação fiscal, ilícito de natureza tributária, pois atenta imediatamente
contra o erário público, o contrabando propriamente dito, a exportação ou
importação de determinada mercadoria proibida, não se enquadra entre os delitos
de natureza tributária”. (BITENCOURT, 2007)
Durval Carneiro, adotando
o mesmo posicionamento de Bitencourt, revela que o bem jurídico protegido no
descaminho se assemelha com o bem tutelado nos demais crimes fiscais, no caso,
a ordem tributária em sentido amplo, a saber:
“Sendo assim, ao se
examinar o tipo penal do art. 334 do CP (caput, 2ª parte), vê-se que o bem
jurídico tutelado é prioritariamente o mesmo dos demais crimes fiscais, ou
seja, a ordem tributária em seu sentido amplo, consubstanciada no interesse da
Administração Pública numa regular arrecadação de tributos para fazer frente às
necessidades coletivas, bem como em aspectos extrafiscais”. (CARNEIRO NETO,
2010)
Portanto, apesar da
maioria ainda entender que o bem tutelado no crime de descaminho não se
restringe apenas ao erário público, atingindo também o bem estar da economia, a
segurança e a soberania do país, há uma nova tendência crescente no país
reconhecendo que o único bem jurídico protegido no ilícito seria exatamente o
mesmo daqueles constantes no art. 1º da Lei 8.137, ou seja, a ordem tributária.
3. O DIREITO PENAL E OS CRIMES TRIBUTÁRIOS
3.1. Fundamentos do
Direito Penal e a “razão de ser” das normas penais tributárias.
O Direito Penal é o ramo
do Direito que tem a função de proteger os bens jurídicos mais importantes da
vida social, através da sanção mais grave que há no sistema, que é a pena.
Porém, é preciso ter sempre em mente a lição preconizada por Edmar Oliveira
Andrade Filho:
“Como criação humana, o
direito tem as virtudes e os defeitos do ser humano. O reconhecimento dessa
circunstância é de fundamental importância para o conhecimento das normas de
direito positivo, [especialmente daquelas] que dispõe sobre ilícitos
relacionados ao descumprimento de obrigações de índole tributária”. (ANDRADE
FILHO, 2001)
Segundo leciona Damásio
de Jesus:
“O Direito Penal regula
as relações do indivíduo com a sociedade. Quando o sujeito pratica um ilícito,
estabelece-se uma relação entre ele e o Estado. Surge, então o jus puniendi,
que é o direito que tem o Estado de atuar sobre os delinquentes na defesa da
sociedade contra o crime. Assim, o direito de punir um indivíduo exsurge toda
vez que o agente pratica um crime (ou contravenção), que segundo a teoria
clássica, concretiza-se em um fato típico, ilícito e culpável”. (JESUS, 2005)
Por outro lado, o Direito
Penal não pode preocupar-se apenas com o resultado da ação, mas, sobretudo,
deve buscar evidenciar o desvalor do resultado com o desvalor da ação que gerou
esse evento. Tanto assim que o fato do agente arrepender-se após praticar um
crime, e agir para que a sua ação não tenha qualquer resultado (retorno ao
status quo ante) não exclui o crime, sendo cabível aqui apenas a aplicação de
um instituto redutor de pena, qual seja o arrependimento posterior,
disciplinado no art. 16, do Código Penal.
Entretanto, a criação de
tipos penais para punição de crimes relacionados à evasão fiscal marcou o
surgimento de um novo ramo dentro do Direito Penal, que utiliza as mesmas
regras gerais deste, e, por isso, não se estrutura como ciência jurídica
autônoma, mas que por outro lado possui características próprias. A essa nova
ramificação atribuiu-se a denominação de Direito Penal Tributário.
Segundo Edmar Oliveira
Andrade Filho:
“Havendo crime,
incidiriam as normas do Direito Penal Tributário, que dizem respeito ao
conjunto de normas jurídicas que tutelam o patrimônio do sujeito ativo da
obrigação tributária e que prescrevem penas privativas de liberdade e multa,
sempre que o descumprimento de tais obrigações se der por meio de artifícios
fraudulentos, segundo a descrição contida na lei, e que estejam presentes os
elementos que informam a culpabilidade”. (ANDRADE FILHO, 2001)
Assim, desde o advento da
Lei nº 4.729/60, que introduziu a punição aos denominados crimes tributários no
sistema jurídico brasileiro, verifica-se uma visível preocupação do legislador
com o resultado da ação, e não com a conduta em si do sonegador. O art. 2º da
lei acima referida, por exemplo, previa a extinção da punibilidade do agente se
este efetuasse o pagamento antes do início da execução fiscal no âmbito
administrativo, o que evidenciava a intenção do legislador em receber os
tributos defraudados, e não de punir os sonegadores.
Pelo exposto,
identifica-se aqui um emprego utilitarista e simbólico do Direito Penal. O
combate à evasão fiscal é feito não pelo temor da pena que possa ser imposta
àqueles que sonegam, mas pela possibilidade destes efetuarem o pagamento
daquilo que sonegaram e, assim, verem-se livres da sanção penal. Há uma
prevalência dos interesses fazendários estatais sobre o jus puniendi deste
mesmo Estado, o que dá ampla margem para a criação de políticas criminais
despenalizadoras.
3.2. Resistência aos
tributos e estímulo ao pagamento
A instituição de tributos
sempre representou um traço de dominação, sendo os povos dominados obrigados a
pagar impostos aos dominadores. O tributo sempre teve o caráter comum de só ser
pago por obrigação e mediante a imposição de duríssimas sanções, muitas vezes a
pena capital. Muito embora o Estado moderno tenha uma concepção muito menos
maniqueísta, é fato que os tributos, nada obstante devessem reverter
integralmente em proveito da sociedade, são frequentemente desviados em
proveito de uma classe política dominante, o que gera um sentimento de
injustiça e uma repulsa ao pagamento de impostos. A esse respeito, com muita
propriedade escreveu Hector Villegas:
“Durante muito tempo,
houve resistência ao tributo, por ser ele considerado fruto de desigualdade,
privilégio e injustiça. O
cumprimento das
obrigações tributárias representava um sinal tangível de submissão e servidão
do indivíduo ao Estado. Daí porque renomados tratadistas consideram o tributo
como um mal, desinteressando-se do estudo da evasão, ou permanecendo indiferentes
diante dela, havendo mesmo quem chegasse a estimulá-la. […] Muitos – que se
horrorizariam se lhes fosse proposto cometer um crime comum – se interessam em
conhecer as manobras para iludir a legislação tributária, não excluindo a
possibilidade de praticá-las. Isto leva a que conhecidos infratores dessa
matéria – longe de serem repudiados pelos círculos sociais onde vivem – sejam
bastante invejados pelo êxito econômico que os acompanha, sendo muitos os que
aguardam oportunidade propícia para imitá-los.” (VILLEGAS, 1974)
Ademais, é sabido que os
contribuintes brasileiros estão hoje em dia submetidos a uma escorchante carga
tributária, sendo plausível que adotem medidas legais para abrandá-la,
acorrendo ao Poder Judiciário, por exemplo, para que prevaleça a correta
interpretação das leis tributárias, ou mesmo evitando de praticar o fato
gerador, explorando alguma lacuna ou obscuridade da lei. Nesse quadro, é
preciso que o legislador crie condições para que o sujeito passivo da obrigação
tributária adimpla suas obrigações, ou seja, é preciso estimular o pagamento.
Por outro lado, aqueles
que se opõem à extinção da punibilidade do pagamento, alegam que as medidas
despenalizadoras estimulam a sonegação, bem como criam um tratamento desigual
entre os que podem e os que não podem pagar, privilegiando os primeiros.
Entretanto, é preciso dizer que é um equívoco acreditar que apenas o efeito
intimidativo da pena seja capaz de fazer com que todos satisfaçam as suas
obrigações tributárias.
Segundo Hugo de Brito
Machado:
“O efeito intimidativo é
diretamente proporcional à certeza de que, apanhado no cometimento delituoso, a
punição não ocorrerá”. Dessa forma, por uma série de razões, entre as quais a
deficiente fiscalização por parte dos órgãos administrativos e a proteção que o
sistema jurídico oferece aos acusados de cometimento de crimes, frequentemente
delinquentes não são sequer processados pelos crimes que cometeram, e, se
processados e condenados, dificilmente são encarcerados.” (MACHADO, 2002)
Da mesma forma, não
procedem as alegações de estímulo à sonegação e tratamento desigual entre os
contribuintes. Novamente Hugo de Brito Machado (2002, p. 233-235) bem
esclarece que o estímulo à evasão
somente existe à medida que a fiscalização tributária seja ineficiente.
Ademais, “um aperfeiçoamento da fiscalização, somado à possibilidade de pena
prisional para os que não pagarem, é o melhor desestímulo à sonegação”. Quanto
à isonomia, é importante frisar que, aquele que não puder realizar o pagamento
para extinguir a sua punibilidade, pode efetuar o parcelamento, e ter sua
punibilidade suspensa até a quitação integral do débito.
Por fim, vale mais uma
vez lembrar que a extinção da punibilidade tem o fito de incentivar o
contribuinte a efetuar o pagamento. Todavia, se ele souber que, mesmo pagando,
continuará sob ameaça da pena privativa de liberdade, não terá nenhum interesse
em integralizar o pagamento.
4. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELO PAGAMENTO
4.1. Conceito de Extinção
da Punibilidade
Extinguir a punibilidade
significa fulminar o jus puniendi do Estado em relação a determinada pessoa,
acusada de cometer um delito. As causas comuns de extinção da punibilidade
estão no artigo 107 do Código Penal, e são, a morte do agente; a anistia, graça
ou indulto; a abolitio criminis; a prescrição, decadência ou perempção; a
renúncia do direito de queixa ou o perdão aceito, nos crimes de ação privada; a
retratação do agente e o perdão judicial. Entretanto, há casos outros,
previstos em leis esparsas, aplicáveis a determinados tipos de delitos, como é
o caso da extinção da punibilidade pelo pagamento, aqui objeto de análise.
4.2. Pagamento e
parcelamento
O pagamento, para efeito
de extinção da punibilidade, deve ser interpretado em sentido bastante amplo.
Dessa feita, embora o pagamento seja apenas uma das formas de extinção do
crédito tributário, todas as demais modalidades de extinção do crédito devem
ser admitidas para fins penais. Afinal, se o crédito já estiver extinto, como
poderá o agente efetuar o pagamento para valer-se do favor legal? Todavia, é um
erro considerar o perdimento das mercadorias descaminhadas como sinônimo de
pagamento, pois a pena de perdimento é uma sanção administrativa e sequer se
equipara às formas de extinção do crédito, nem é compatível com o pagamento.
A extinção do crédito
tributário, por seu turno, é regulada pelo artigo 156 do Código Tributário
Nacional, e, dentre as modalidades previstas em lei está a transação. Dessa
forma, houve uma enorme controvérsia jurisprudencial acerca do parcelamento do
débito, mesmo que não fosse realizado o pagamento de nenhuma parcela. Algumas
turmas do Superior Tribunal de Justiça seguiram o entendimento de que o simples
parcelamento seria uma forma de transação, e, portanto, instrumento hábil a
extinguir a punibilidade.
Contudo, a orientação
preconizada pelo STJ criava uma solução equivocada, pois não atendia aos
anseios do Fisco, ao exigir tão somente a formalização do parcelamento, e nem à
necessária repressão do aparelho penal. Dessa forma, diversos fraudadores,
descobertos pela
fiscalização tributária, efetuavam o
parcelamento do débito, livrando-se do processo penal e de uma possível
condenação, porém jamais chegavam a adimplir as condições acordadas, servindo
esta lacuna legal, como incentivo à evasão fiscal.
Por sorte, as legislações
que sobrevieram, como a Lei nº 9.964/00 (Refis I), a Lei nº 10.684/03 (REFIS
II, também conhecido como PAES), e até mesmo a Lei nº 11.941/09, regulamentando
os programas de regularização de créditos federais, deram novo tratamento à
matéria penal, sovertendo o entendimento anteriormente esposado.
Primeiro, a lei do Refis
I inovou ao prever a suspensão do processo penal (e consequentemente da
pretensão punitiva) enquanto o contribuinte estivesse vinculado ao
parcelamento. Esta providência foi extremamente importante, pois, por um lado,
possibilitou àqueles que não possuem condições financeiras a oportunidade de
pagar, e, assim, verem extinta a punibilidade dos seus crimes, e, por outro,
definiu que apenas o cumprimento integral do acordo extinguiria a punibilidade
do agente, impedindo o denominado “parcelamento de ocasião”. Vale frisar que,
por expressa determinação legal, a formalização do ajuste deveria ocorrer antes
do recebimento da denúncia.
Já a Lei 10.684/03,
mantendo a suspensão do processo e da prescrição penal enquanto não rescindidos
os parcelamentos, e a extinção da punibilidade quando totalmente adimplido o
pacto, silenciou quanto à necessidade da formalização ser concretizada antes do
recebimento da denúncia. Isso levou a que muitos doutrinadores concluíssem pela
possibilidade do agente efetuar o parcelamento em qualquer fase do processo.
Ademais, sendo lei mais benéfica ao réu, possui aplicação retroativa.
Da mesma forma, a Lei
11.941/09 manteve a disciplina da matéria nos moldes das legislações
anteriores, determinando, somente, que se o parcelamento for realizado antes do
recebimento da denúncia, essa somente poderá ser aceita na superveniência de
inadimplemento da obrigação objeto da denúncia.
Nessa vereda, fica mais
uma vez evidenciado o maior interesse do Estado em receber seus créditos, ainda
que de forma parcelada, em vez de punir eventuais fraudadores. É a adoção de
uma política penal-tributária que privilegia a realização da receita,
funcionando como um grande estímulo à regularização fiscal e ao pagamento dos
tributos sonegados.
Por fim, cabe registrar
que essas mesmas leis que disciplinam os programas de parcelamento, restringem
a aplicação do favor legal apenas aos crimes previstos nos artigos 1º e 2º da
Lei nº 8.137/90 e nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal. Entretanto, por
todo o exposto no presente trabalho, conclui-se pela possibilidade de sua extensão
a todos os crimes tributários, inclusive o descaminho, não se justificando a
diferenciação feita pela lei.
4.3. Analogia
“Pró-contribuinte” em relação ao crime de descaminho.
A analogia consiste em
aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso
semelhante. Onde houver o mesmo fundamento, deve ser aplicado o mesmo direito.
Como corolário do princípio da legalidade, proíbe-se o uso da analogia para
fundamentar ou agravar a pena (“nullum crimen sine lege stricta”). Porém, seu
uso é plenamente aceito quando o for para beneficiar o réu, justificando-se no
princípio da equidade.
Segundo Francisco de
Assis Toledo:
“A analogia pode ser
considerada sob o aspecto da lei ou do direito. No primeiro caso, “parte-se de
um preceito isolado; no segundo, parte-se de um conjunto de normas, extraem-se
delas o pensamento fundamental ou os princípios que as informam para aplicá-los
a um caso omisso, semelhante ao que encontraria subsunção natural naquelas
normas ou princípios”. (TOLEDO, 2000)
Este último é exatamente
o caso
Portanto, deverá o Poder
Judiciário estender ao crime de descaminho a possibilidade da extinção da
punibilidade pelo pagamento, como forma de estimular a quitação dos tributos
sonegados.
5. CONCLUSÃO
Primeiramente, por todo o
exposto acima, fica claro que o crime de descaminho não é propriamente um crime
contra a Administração Pública, mas um delito tributário, pois atenta,
essencialmente, contra o interesse fazendário do Estado.
Outro ponto importante é
reconhecer que o papel do Direito Penal no campo tributário, deva ser, única e
exclusivamente, impelir o contribuinte a pagar o que deve.
O pagamento deve ser
entendido como sinônimo de extinção do crédito tributário, e o parcelamento
suspende a prescrição da pretensão punitiva até o adimplemento total do acordo,
quando então restará extinta a punibilidade;
Nesse sentido, a possibilidade
da extinção da punibilidade pelo pagamento é, do ponto de vista pragmático, a
solução que melhor atende aos interesses do Fisco, pois, além de estimular a
quitação, evita enormes gastos com a movimentação da máquina judiciária para
processar o sonegador.
Para isso, por uma
questão de equidade e justiça, deve-se estender a aplicação desse favor legal a
todos os crimes tributários, com fundamento na analogia “in bonam partem”. Mas
não é só uma questão de analogia, deve-se buscar também, uma interpretação no
aspecto finalístico da norma. Se a intenção é receber os tributos sonegados,
deve-se aplicar a norma de forma que ela tenha a máxima efetividade em relação
a este fim. E outro não é o interesse do Estado senão o de receber aquilo que
tem direito.
Portanto, não resta dúvida de que a melhor solução para o problema em
questão é a simples aplicação ao crime de descaminho da possibilidade da
extinção da punibilidade através do pagamento dos tributos sonegados.
6.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito
Penal Tributário: crimes contra a ordem tributária e contra a previdência
social. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado
de Direito Penal - Parte especial. v 5. São Paulo: Saraiva, 2007.
CARNEIRO NETO, Durval. A
atipicidade do descaminho quando há perdimento de mercadoria. Rio Grande.
Âmbito Jurídico, 01 jun 2010.
HUNGRIA, Nelson. Comentários
ao Código Penal: volume IX. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959.
JESUS, Damásio Evangelista. Tratado
de Direito Penal, volume 1: parte geral. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
MACHADO, Hugo de Brito. Estudos
de Direito Penal Tributário. São Paulo: Atlas, 2002.
NETO, André Nabarrete. Extinção
da Punibilidade nos crimes contra a Ordem Tributária. Revista Brasileira de
Ciências Criminais nº 17. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios
básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.T
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