Incorporadora que assume empreendimento em andamento - aspectos jurídicos ligados à correção monetária
14 de Junho de 2016
Artigo publicado no Site Migalhas em 22/06/2016.
Igor de Souza Mercêdo Moreira
Graziela Sacramento França
Incorporação imobiliária, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, é a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas por unidade autônomas. Assim, o incorporador é toda pessoa jurídica ou física que promova a construção de edificação composta de unidades autônomas, bem como a sua comercialização, total ou parcial.
Indiscutível que a volatilidade da economia, o próprio mercado e todos os diversos fatores ligados ao planejamento da obra afetam diretamente as operações de incorporação imobiliária. Não raras às vezes, durante o curso contratual de determinada incorporação, as dificuldades financeiras fazem com que o incorporador originário seja substituído por nova empresa, tudo para que o empreendimento chegue ao seu termo final.
Neste cenário de substituição do incorporador, não é incomum que a Instituição Financeira, que em um primeiro momento participava da operação como mera financiadora do negócio, assuma as funções de incorporador propriamente dito, tudo para minimizar os seus próprios prejuízos, bem como eventuais transtornos suportados pelos consumidores, destinatários finais das unidades autônomas.
-> Ocorre que, no momento em que essas empresas/bancos assumem o empreendimento, visando minorar o prejuízo causado pela antiga construtora, deparam-se com questões jurídicas até então controversas na jurisprudência pátria.
Algumas das possíveis consequências dessa mudança de incorporador seriam, por exemplo, a ocorrência de atraso na entrega da obra, na concessão do habite-se e no desmembramento da matrícula na qual foi registrada a incorporação.
Paralelamente, a nova incorporadora passa a sofrer reclamações dos promitentes compradores, que alegam, por exemplo: a) prejuízo com o atraso na entrega das chaves e consequente impossibilidade de alugar o imóvel ou de destiná-lo para moradia própria; b) impossibilidade de obtenção de financiamento imobiliário por não ter havido a individualização das matrículas que compõem o empreendimento.
Inclusive, é comum a tentativa dos promitentes compradores requererem, perante o Judiciário, a concessão de liminares objetivando a suspensão da correção monetária do saldo devedor a partir do momento em que a entrega das chaves é adiada ou após a expedição do habite-se, sob o fundamento de que o atraso se deu por única e exclusiva culpa da construtora.
-> Diante do acima, o tema problema a ser analisado diz respeito à possibilidade de se defender, em eventual negociação, ou até mesmo perante o Judiciário, que a nova incorporadora possa corrigir monetariamente os saldos devedores dos consumidores finais, ainda que haja atraso na entrega das chaves.
Primeiramente cabe registrar que a correção monetária tem por finalidade apenas recompor o poder aquisitivo do valor da moeda, afetado pelas consequências da inflação, sendo plenamente possível e legal a sua cobrança, ainda que durante o período em que houve atraso na entrega da obra.
O afastamento da correção monetária violaria o equilíbrio econômico-financeiro do negócio jurídico entabulado entre as partes, provocando, inclusive, o enriquecimento ilícito do comprador. Foi justamente para evitar esse desequilíbrio que a Lei 4.864/65 determinou, em seu artigo 1º, que “(...) os contratos que tiverem por objeto a venda ou a construção de habitações com pagamento a prazo poderão prever a correção monetária da dívida (...)”.
Assim, a mora no cumprimento da obrigação de entrega do imóvel não pode ser utilizada como argumento para a suspensão da cláusula de correção monetária do saldo devedor, até porque inexiste equivalência econômica entre as duas obrigações/direitos.
A jurisprudência pátria reconhece a obrigatoriedade de se corrigir monetariamente o valor do saldo devedor a ser pago pelo mutuário no período de atraso da entrega da obra. Uma vez que a nova incorporadora assumiu a posição da antiga empresa dona do empreendimento, fará jus à aplicação da correção monetária, haja vista a sua natureza de recomposição da moeda.
-> Sendo devida a correção monetária, a dúvida passa a gravitar em torno da legalidade de se utilizar o índice inicialmente pactuado entre as partes, que normalmente é o Índice Nacional de Custo de Construção - INCC.
Há que se esclarecer que o INCC é um dos 03 (três) componentes do Índice Geral de Preços - IGP-M, com um peso de 10%. Os outros são o índice de Preços ao Consumidor - IPC (com peso de 30%) e o Índice de Preços no Atacado - IPA (com peso de 60%). O INCC é elaborado pela Fundação Getúlio Vargas e afere, mês a mês, os custos dos insumos empregados em construções habitacionais, sendo certo que sua variação em geral supera a variação do custo de vida médio da população.
Em negócios imobiliários, os contratos normalmente preveem, na cláusula de condições gerais de pagamento, o índice que será aplicado nas parcelas representativas do preço que tenham vencimento até a data prevista para entrega das chaves, e o que será aplicado àquelas que tenham vencimento após a referida data.
Ocorre que, considerando que o INCC é normalmente um índice de atualização mais oneroso para o consumidor, a jurisprudência entende que a aplicação desse índice deixa de ser legítima a partir do momento em que a construtora atrasa a entrega da obra. Citadas decisões se balizam no fato de o consumidor não poder ser prejudicado por um descumprimento contratual imputável exclusivamente à construtora.
Nesses casos, a solução dada para se encontrar o equilíbrio contratual entre as partes envolvidas (manter a correção monetária do saldo devedor sem a utilização do “índice mais oneroso ao consumidor”) é a aplicação do INCC apenas até a data prevista no contrato para a entrega das chaves e, daí para frente, mesmo que não finalizada a obra, deve-se utilizar o índice estipulado contratualmente para o momento posterior à entrega das chaves (o IGPM, por exemplo), ou, não havendo tal previsão, um índice oficial de menor impacto.
Lado outro, há a possibilidade de se defender a aplicação do índice originalmente contratado (incluindo aí o INCC), já que não se deve esquecer que a nova incorporadora, prontamente e de forma inovadora, decidiu por intervir e assumir, com recursos próprios, a condução da obra. O mesmo ocorre quando as instituições financeiras que, até então exerciam as funções de financiadora, assumem a obra, tentando, desta maneira, não absorver a perda de recursos já investidos.
Em ambas as hipóteses, há o resguardo não só dos interesses e direitos próprios, mas principalmente os de todos os demais terceiros interessados, adquirentes de unidades habitacionais de tal empreendimento. É evidente que, não fosse a conduta da nova empresa, os maiores lesados e prejudicados seriam os próprios compradores, que teriam não só que arcar com o ônus do valor já investido, como certamente não usufruiriam do imóvel.
Há que se considerar, ainda, que o atraso neste período se deu por conta da natural reestruturação do negócio, que envolve a apresentação e o planejamento de novo projeto, bem como depende de circunstâncias alheias, como, por exemplo, o fluxo administrativo de órgãos públicos.
-> Portanto, deve ser reconhecida a aplicação da correção monetária ainda que haja atraso na entrega das chaves, tendo em vista sua finalidade de recomposição do poder aquisitivo do valor da moeda. Ainda, é possível defender, para casos peculiares como os descritos acima, a aplicação do índice previamente contratado (INCC, por exemplo) como índice de correção monetária, inclusive durante o período em que houve o atraso na entrega das chaves, mormente porque a conduta da nova incorporadora diminuiu sobremaneira o prejuízo que seria arcado pelos compradores, que sequer usufruiriam do imóvel. O que se não permite é a cobrança do INCC após a entrega das chaves.
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